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jogos sem fronteiras

É motivo de permanente fascínio as medidas de liberalização nas sociedades autoritárias, politicamente antidemocráticas. A mais extraordinária, sem dúvida, foi a tentada no periodo da perestroika, na já longínqua década de 80 do século passado.

Actualmente, e desde algumas décadas atrás, os mandarins chineses procuram a quadratura do circulo, tentando conciliar o poder exclusivo duma élite com a liberdade económica e o consumismo. Se tivessem lido Marx, já teriam noção dum dos seus axiomas básicos: alterações na infra-estrutura (leia-se: a correspondência entre as relações de produção e as forças produtivas) implicam necessariamente alterações na superestrutura (leia-se: as instituições políticas e jurídicas, o Estado, as ideologias, a cultura, etc).

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Comparar estes processos com as “transições” do regime franquista ou da ditadura chilena para regimes democráticos é sempre traiçoeiro, dada a dimensão dos impérios soviéticos e chinês. Nestas coisas, o tamanho importa.

Semelhanças podem ser encontradas no que chamo o “complexo do rei Lear”: o velho rei chamou suas filhas para dividir entre elas o reino e o poder, com a condição de todas respeitarem sua natural autoridade de pai e rei, assim como de lhe garantirem todas as honras e privilégios próprios à sua real pessoa.

Pinochet parece ter sofrido desse complexo e passou os derradeiros anos da sua vida perseguido pela justiça, um pouco à semelhança de Lear. Gorbachev também parece ter cultivado ilusões, não relativamente à sua pessoa, mas ao cargo que recebera, e que fizera dele um dos dois homens mais poderosos do mundo.

Muito mais sábios nestas coisas do poder e do tempo que passa, os mandarins chineses não largam o poder, não o partilham, não abrem excepções, não revelam dúvidas. Contudo, essa aparente vantagem tem sempre um preço, e a sua nemésis é a própria sociedade globalizada que projectou a China como super-potência económica.

Seguros da pujança económica e cientes de que só pelo crescimento poderão ultrapassar as contradições internas (o que em linguagem de gente quer dizer: enquanto houver dinheiro para a maioria se conformar com a ilusão de serem bem governados), meteram-se nessa imensa tentação de todos os regimes felizes-consigo-mesmos, sejam ditaduras, sejam democracias: organizar um grande evento internacional. No caso, os Jogos Olimpicos. Paz e Concórdia universal, um tema bem chinês com ressonâncias no próprio Olimpo (bem se vê que os velhos mitos gregos também andam esquecidos…)

Em Portugal já temos experiência como essas festas, quando não sustentadas por um genuíno desenvolvimento económico e social, acabam por provocar ressaca e depressão. Mas os mandarins chineses ainda podem sonhar e iludir os outros, chineses ou não, de que a China está num processo de desenvolvimento imparável. E está. Só que de modo diferente do entendimento restrito que os mandarins gostam de dar à ideia.

Na sua ingenuidade, convocar as atenções do media de todo o mundo para si será como naquelas festas de casamento em que tudo é planeado ao pormenor: a lista de convidados, os lugares nas mesas, o cardápio, o vestido da noiva…

Todos sorrindo, todos felizes, todos invejando noiva, noivo e respectivas famílias. Todos querendo aparecer na foto como os melhores amigos.

Mas, como qualquer primeiro-ministro dum país democrático sabe demasiado bem, são estes momentos de glória que mais atraem descontentes, insatisfeitos, mal-agradecidos, mal-dizentes, toda uma clique que só pretende aproveitar a publicidade paga pelos outros para se autopromover.

E como exterminar esta praga quando há cada vez mais gente com telemóveis (tantos deles capazes de fotografar, filmar e enviar imagens de modo discreto e rápido)? Como evitar que hajam desmancha-prazeres capazes de arriscar a vida perante legiões de jornalistas, políticos e figuras públicas internacionais que, expressamente, são convidados a presenciar o grande acontecimento? Como abafar ondas de choque na net num momento em que esta estará mais aberta ao exterior?

Eu cá não sei. Se calhar, depois de tanto desprezarem a evolução política e social da Russia pós-soviética, os mandarins tenham de aprender alguma coisa, outra vez, com os novos czares.

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